GRAÇA GUISE - testemunho de ex-bolseira
Esta proposta da Fundação Oriente para fazermos um balanço em conjunto do programa de bolsas faz-me ver que nunca agradeci verdadeiramente como deveria esta oportunidade que me foi dada. Pelo que começo por agradecer à Fundação Oriente por me ter concedido a bolsa de estudo de língua e cultura chinesa em Pequim entre 1997 e 2000. Volvidos todos estes anos, agora olho para trás e percebo o amplo corredor que a bolsa abriu à minha frente.
A bolsa de estudo deu-me o apoio e tranquilidade necessária para aprender chinês. Quando a Fundação Oriente me atribuiu a bolsa para prosseguir os estudos de língua chinesa, depois de terminar a universidade em Portugal, foi apenas apostando na minha intenção de seguir uma carreira ligada à informação entre Portugal e a China. Sem pedir nada em troca, além do bom aproveitamento, a Fundação Oriente renovou-me a bolsa os anos necessários para completar os estudos. Esse período deu-me o tempo necessário para aprender a língua e mergulhar no país a fundo, sem ter de me preocupar com mais nada, a não ser viver o processo de estudar e respirar noutro país, sem pressa ou pressão.
Quando rumei a Pequim pela porta que a Fundação Oriente me abriu, perseguia a ideia dos tempos da adolescência de seguir uma carreira ligada à informação e, uma vez que já estudava chinês nos tempos livres na universidade, porque não, começar como correspondente na China, movida por uma certa curiosidade mórbida de tentar perceber como é que é possível as pessoas viverem num país tão reprimido e controlado. Na China, senti que andei umas décadas para trás, para o tempo dos meus pais, que viveram durante o antigo regime em Portugal. Procurei descobrir uma linguagem mais actual e transparente dum país que pareceria adormecido emocionalmente. Acabei por encontrar descodificação no pai do rock chinês, Cui Jian.
No ano que fui para Pequim, em 1997, Cui Jian, há muito que tinha sido colocado de lado pelo sistema, porque era uma das vozes da geração de Tiananmen, que ousou lutar por uma vida mais colorida contra o mundo a preto e branco da China comunista. Quando lá estive era possível vê-lo a actuar em bares na capital chinesa, numa certa semi-clandestinidade, e agora que enriquecer era glorioso, muitos dos seus antigos fãs diziam que as músicas dele já não lhes diziam muita coisa. Um desses antigos fãs, um cantor de ópera chinesa, que agora aprendia inglês à procura de outras avenidas para a sua vida, acedeu em ajudar-me a traduzir algumas das músicas do grande rocker chinês quando me instalei em Pequim, e confessou-me que ao voltar a ouvir as músicas de Cui Jian, ficou tão emocionado, que não conseguiu dormir a noite inteira!
Enquanto estudei como bolseira da Fundação Oriente em Pequim fui tentando trabalhar como jornalista free lance, aprendia a língua e sentia o pulso ao país, numa justaposição de tarefas que criaram uma excelente colaboração. Quando acabei os estudos em Pequim fui trabalhar para Macau como jornalista no canal português da TDM – Rádio. Em Macau, o meu domínio do mandarim foi visto com grande admiração pela comunidade portuguesa e chinesa, o que me surpreendeu. Fui para Macau em 2000, no primeiro ano depois da transferência de poderes de Portugal para a China, e havia uma certa ideia no ar - não diria vontade -, de que era preciso dominar o idioma do novo poder soberano, apesar de em Macau se falar cantonense. Também confesso aqui que o meu conhecimento de mandarim foi o que me permitiu apanhar o cantonense de ouvido e de me adaptar ao chinês tradicional escrito.
Dois anos depois, fui convidada para ir como delegada para a agência Lusa, sobretudo devido ao conhecimento da língua, mais do que outra coisa qualquer. Confesso que fui um pouco a contra-gosto. Em Macau apercebi-me que sabia mais do que se passava na China, do que quando lá vivia. Por outro lado, Macau é este canto do mundo à margem da China ainda tão português, onde me senti logo em casa, com tantos portugueses à minha volta e um relacionamento mais de igual para igual com os chineses, por ser uma sociedade mais livre e desenvolvida economicamente.
Quando trabalhei na Lusa em Pequim voltei a estar emersa na realidade de um país onde o sistema de benefícios de igual para todos da economia planificada funcionou sempre descalço, como um antigo professor uma vez me descrevera. Que passou directamente para um capitalismo sem protecção com as políticas de reforma e abertura onde tudo parecia ter autonomia de gestão financeira – hospitais, universidades, camponeses, tudo e todos tinham de aprender a funcionar por conta própria, o que muitos interpretavam como funcionar em benefício próprio. O país prosseguia na corrida desenfreada para o desenvolvimento, com os anos de progresso económico a revelarem-se mais destruidores da cultura e tradições chinesas, pelo abandono e desvalorização que geraram, do que os anos mais demolidores do maoísmo, incluindo a Revolução Cultural, como um artista de teatro de sombras tão bem definira.
Na recta final dos dois anos de Lusa em Pequim, Cui Jian, actuou finalmente pela primeira vez no Estádio dos Operários desde Tiananmen, mas apenas porque inserido num concerto para um fim de caridade qualquer e entre uma série de outros cantores. Seja como for, quando subiu ao palco, o público inteiro levantou-se e foi o único que incendiou o estádio.
Uma das músicas de Cui Jian, que nunca chegou a ser lançada no país, era sobre o retorno de Hong Kong para a China, que aconteceu dois anos antes de Macau. Cui Jian descrevia Hong Kong como um filho que volta para a casa dos pais em adulto, e questionava se a relação iria ser pacífica e compatível. Esta é a realidade hoje de Hong Kong e Macau, que vivem de forma autónoma em relação a Pequim, sob o princípio de “um país, dois sistemas”, onde os filhos habituados a um estilo de vida mais liberal se vêm confrontados com uns pais mais conservadores e economicamente menos abonados, gerando atritos e apreensão em relação ao futuro.
Quando voltei para Macau, depois de ter estado na Lusa, quis trabalhar noutra área para ter uma vida mais estruturada, e acabei por mudar de lado, digamos assim, entrando para o governo, para trabalhar na área de comunicação e relações com a imprensa. Naturalmente que o meu conhecimento da língua chinesa foi uma vez mais importante para me abrir mais esta porta, apesar do português continuar a ser, com o chinês, língua oficial em Macau. A minha âncora já tinha sido lançada em Macau, uma vez antes de voltar a Pequim casei-me com um jornalista português que vive cá desde os 15 anos e para quem esta cidade é a sua casa, e a nossa filha também nasceu aqui. Foi também daqui que aprofundei a minha incursão em yoga na Índia, que tinha começado nos de trabalho em Pequim, quando o meu corpo se revoltou contra uma vida com um horizonte só de trabalho, sem liberdade e espírito, um pouco como a cidade e o país onde vivia.
O meu percurso ainda não acabou, mas a semente que a bolsa lançou e deu condições para crescer, continua a florescer e a dar fruto. As bolsas de estudo têm este condão de lançar sementes em várias direcções, de fomentar uma arco-íris de talentos linguísticos, artísticos,culturais, científicos e tanto mais, uns mais raros do que outros, que ajudam a manter a diversidade deste nosso mundo em português, no caso da Fundação Oriente, em ligação ao oriente.
Apresentamos o ultimo testemunho de uma ex-bolseira que foi lido no encontro do passado dia 23 de Novembro. Este testemunho é um bom exemplo da portas que se podem abrir através da atribuição de uma bolsa de estudo, neste caso concreto de Línguas e Culturas Orientais - Mandarim.
Graça Guise, estudou Relações Internacionais na Universidade do Minho, ao mesmo tempo que frequentava o curso livre de Língua chinesa da mesma Universidade.
Rumou para Pequim em 1997, onde foi bolseira da Fundação Oriente e onde acabou por completar outra licenciatura em Língua Chinesa.
Desde 2000, reside em Macau, foi repórter da Rádio Macau e, desde 2002, ingressou no departamento de Comunicação e Relações Externas da Direção dos Serviços de Turismo do Governo da Região Administrativa Especial de Macau. Vive em Macau com a sua família.
Graça Guise, estudou Relações Internacionais na Universidade do Minho, ao mesmo tempo que frequentava o curso livre de Língua chinesa da mesma Universidade.
Rumou para Pequim em 1997, onde foi bolseira da Fundação Oriente e onde acabou por completar outra licenciatura em Língua Chinesa.
Desde 2000, reside em Macau, foi repórter da Rádio Macau e, desde 2002, ingressou no departamento de Comunicação e Relações Externas da Direção dos Serviços de Turismo do Governo da Região Administrativa Especial de Macau. Vive em Macau com a sua família.
Esta proposta da Fundação Oriente para fazermos um balanço em conjunto do programa de bolsas faz-me ver que nunca agradeci verdadeiramente como deveria esta oportunidade que me foi dada. Pelo que começo por agradecer à Fundação Oriente por me ter concedido a bolsa de estudo de língua e cultura chinesa em Pequim entre 1997 e 2000. Volvidos todos estes anos, agora olho para trás e percebo o amplo corredor que a bolsa abriu à minha frente.
A bolsa de estudo deu-me o apoio e tranquilidade necessária para aprender chinês. Quando a Fundação Oriente me atribuiu a bolsa para prosseguir os estudos de língua chinesa, depois de terminar a universidade em Portugal, foi apenas apostando na minha intenção de seguir uma carreira ligada à informação entre Portugal e a China. Sem pedir nada em troca, além do bom aproveitamento, a Fundação Oriente renovou-me a bolsa os anos necessários para completar os estudos. Esse período deu-me o tempo necessário para aprender a língua e mergulhar no país a fundo, sem ter de me preocupar com mais nada, a não ser viver o processo de estudar e respirar noutro país, sem pressa ou pressão.
Quando rumei a Pequim pela porta que a Fundação Oriente me abriu, perseguia a ideia dos tempos da adolescência de seguir uma carreira ligada à informação e, uma vez que já estudava chinês nos tempos livres na universidade, porque não, começar como correspondente na China, movida por uma certa curiosidade mórbida de tentar perceber como é que é possível as pessoas viverem num país tão reprimido e controlado. Na China, senti que andei umas décadas para trás, para o tempo dos meus pais, que viveram durante o antigo regime em Portugal. Procurei descobrir uma linguagem mais actual e transparente dum país que pareceria adormecido emocionalmente. Acabei por encontrar descodificação no pai do rock chinês, Cui Jian.
No ano que fui para Pequim, em 1997, Cui Jian, há muito que tinha sido colocado de lado pelo sistema, porque era uma das vozes da geração de Tiananmen, que ousou lutar por uma vida mais colorida contra o mundo a preto e branco da China comunista. Quando lá estive era possível vê-lo a actuar em bares na capital chinesa, numa certa semi-clandestinidade, e agora que enriquecer era glorioso, muitos dos seus antigos fãs diziam que as músicas dele já não lhes diziam muita coisa. Um desses antigos fãs, um cantor de ópera chinesa, que agora aprendia inglês à procura de outras avenidas para a sua vida, acedeu em ajudar-me a traduzir algumas das músicas do grande rocker chinês quando me instalei em Pequim, e confessou-me que ao voltar a ouvir as músicas de Cui Jian, ficou tão emocionado, que não conseguiu dormir a noite inteira!
Enquanto estudei como bolseira da Fundação Oriente em Pequim fui tentando trabalhar como jornalista free lance, aprendia a língua e sentia o pulso ao país, numa justaposição de tarefas que criaram uma excelente colaboração. Quando acabei os estudos em Pequim fui trabalhar para Macau como jornalista no canal português da TDM – Rádio. Em Macau, o meu domínio do mandarim foi visto com grande admiração pela comunidade portuguesa e chinesa, o que me surpreendeu. Fui para Macau em 2000, no primeiro ano depois da transferência de poderes de Portugal para a China, e havia uma certa ideia no ar - não diria vontade -, de que era preciso dominar o idioma do novo poder soberano, apesar de em Macau se falar cantonense. Também confesso aqui que o meu conhecimento de mandarim foi o que me permitiu apanhar o cantonense de ouvido e de me adaptar ao chinês tradicional escrito.
Dois anos depois, fui convidada para ir como delegada para a agência Lusa, sobretudo devido ao conhecimento da língua, mais do que outra coisa qualquer. Confesso que fui um pouco a contra-gosto. Em Macau apercebi-me que sabia mais do que se passava na China, do que quando lá vivia. Por outro lado, Macau é este canto do mundo à margem da China ainda tão português, onde me senti logo em casa, com tantos portugueses à minha volta e um relacionamento mais de igual para igual com os chineses, por ser uma sociedade mais livre e desenvolvida economicamente.
Quando trabalhei na Lusa em Pequim voltei a estar emersa na realidade de um país onde o sistema de benefícios de igual para todos da economia planificada funcionou sempre descalço, como um antigo professor uma vez me descrevera. Que passou directamente para um capitalismo sem protecção com as políticas de reforma e abertura onde tudo parecia ter autonomia de gestão financeira – hospitais, universidades, camponeses, tudo e todos tinham de aprender a funcionar por conta própria, o que muitos interpretavam como funcionar em benefício próprio. O país prosseguia na corrida desenfreada para o desenvolvimento, com os anos de progresso económico a revelarem-se mais destruidores da cultura e tradições chinesas, pelo abandono e desvalorização que geraram, do que os anos mais demolidores do maoísmo, incluindo a Revolução Cultural, como um artista de teatro de sombras tão bem definira.
Na recta final dos dois anos de Lusa em Pequim, Cui Jian, actuou finalmente pela primeira vez no Estádio dos Operários desde Tiananmen, mas apenas porque inserido num concerto para um fim de caridade qualquer e entre uma série de outros cantores. Seja como for, quando subiu ao palco, o público inteiro levantou-se e foi o único que incendiou o estádio.
Uma das músicas de Cui Jian, que nunca chegou a ser lançada no país, era sobre o retorno de Hong Kong para a China, que aconteceu dois anos antes de Macau. Cui Jian descrevia Hong Kong como um filho que volta para a casa dos pais em adulto, e questionava se a relação iria ser pacífica e compatível. Esta é a realidade hoje de Hong Kong e Macau, que vivem de forma autónoma em relação a Pequim, sob o princípio de “um país, dois sistemas”, onde os filhos habituados a um estilo de vida mais liberal se vêm confrontados com uns pais mais conservadores e economicamente menos abonados, gerando atritos e apreensão em relação ao futuro.
Quando voltei para Macau, depois de ter estado na Lusa, quis trabalhar noutra área para ter uma vida mais estruturada, e acabei por mudar de lado, digamos assim, entrando para o governo, para trabalhar na área de comunicação e relações com a imprensa. Naturalmente que o meu conhecimento da língua chinesa foi uma vez mais importante para me abrir mais esta porta, apesar do português continuar a ser, com o chinês, língua oficial em Macau. A minha âncora já tinha sido lançada em Macau, uma vez antes de voltar a Pequim casei-me com um jornalista português que vive cá desde os 15 anos e para quem esta cidade é a sua casa, e a nossa filha também nasceu aqui. Foi também daqui que aprofundei a minha incursão em yoga na Índia, que tinha começado nos de trabalho em Pequim, quando o meu corpo se revoltou contra uma vida com um horizonte só de trabalho, sem liberdade e espírito, um pouco como a cidade e o país onde vivia.
O meu percurso ainda não acabou, mas a semente que a bolsa lançou e deu condições para crescer, continua a florescer e a dar fruto. As bolsas de estudo têm este condão de lançar sementes em várias direcções, de fomentar uma arco-íris de talentos linguísticos, artísticos,culturais, científicos e tanto mais, uns mais raros do que outros, que ajudam a manter a diversidade deste nosso mundo em português, no caso da Fundação Oriente, em ligação ao oriente.
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