Rafael G`Antunes
Fotografo
Malaca 2024 - Padri Sa Chang
Desde 1999 que a Fundação Oriente tem um protocolo para atribuição de bolsas de estudo a estudantes de fotografia do
Centro de Arte e Comunicação Visual - ARCO (https://www.instagram.com/arco.ig/ . Já tivemos diversos fotógrafos a viajar para o Oriente. Este ano foi atribuída uma bolsa a
Rafael G`Antunes (https://www.instagram.com/vaderetrophotography/ e www.rafaelgantunes.pt)que rumou a Malaca para trabalhar sobre a comunidade Kristang de
Malaca.
Este trabalho documenta a comunidade Portuguesa de Malaca - bem como o
bairro Português de Malaca, o seu espaço-território; o Padri sa Chang, o
Portuguese Settlement ou Kampung Portugis, na designação nas línguas Kristang,
Inglesa e Malaia, respetivamente. Explorando os conceitos de identidade,
território, memória e nostalgia, aprofundou a relação de tensão existente entre
as dinâmicas tradicionais e comunitárias praticadas no bairro e o processo de
desenvolvimento turístico projetado para a cidade de Malaca .Entre os inúmeros
projetos de desenvolvimento turístico previstos, há um - o “Melaka Gateway” -
que prevê a construção de uma ilha artificial mesmo em frente ao bairro
Português de Malaca. A concretização desse empreendimento representa não só uma
forte ameaça ao tradicional modo de vida da comunidade, como também à sua
própria integridade e língua. Numa comunidade na qual a pesca e,
consequentemente, o mar, assumem um carácter vital desde a sua génese, esta
eventualidade - cada vez mais efetiva - põe em causa a continuidade do bairro e
o seu referencial de codificação enquanto espaço social dos Portugueses de
Malaca. Põe também em causa, necessariamente, todas as demonstrações de carácter
cultural e identitário que estruturam os Portugueses de Malaca enquanto
comunidade.
Foi em Agosto de 1511 que Afonso de Albuquerque, a bordo da famigerada nau “Frol de la mar”, tomou a cidade de Malaca ao Sultão local. Com a criação da diocese de Malaca em 1558, esta cidade, além de estratégica numa rede marítima e mercantil que se estendia a leste nos mares da China, passando pelo Golfo de Bengala, Golfo Pérsico e até ao Mar Vermelho, foi também um centro fundamental da ação missionária na região, que se espalharia ainda mais para leste em direção a Solor, Molucas, China e Japão.
A herança católica deixada pelos Portugueses, entre 1511 e 1641, na cidade de Malaca ainda hoje é não só visível, como fator aglutinador de uma comunidade que persiste em auto designar-se Portugueses de Malaca.
Apesar de estar hoje ameaçada, mantém a sua língua, que muitos designam por Kristang ou Papiá Kristang, e que se pode traduzir por “falar cristão” - um crioulo de matriz portuguesa. “Se há alguma coisa que nos fez subsistir como comunidade, foi a Igreja Católica.” - disse-me Martin Theseira, activista e presidente da ONG SOS Melaka (Save Our Seashores https://www.facebook.com/groups/sosmelaka/)
Dos atuais cerca de 1.600 habitantes do bairro português de Malaca - do Padri sa Chang, na designação Kristang -, bem mais de 1.000 são católicos praticantes, segundo a responsável pela Igreja da Imaculada Conceição,
Marina Felix “A missa é mais importante que os namorados” - diz. Para Verónica Lopez, o uso do véu durante a liturgia é um sinal de respeito para com Cristo e a Igreja.
Foi nos princípios da década de 30 do século XX que nasceu o bairro português de Malaca. Dois dos grandes impulsionadores foram os padres Álvaro Martin Coroado e Jules Pierre François - daí ter resultado a sua designação popular em língua crioula de Padri sa Chang, que em português quer dizer o Chão do Padre. O nascimento jurídico do bairro, em 1926, destinava os cerca de 11,2 hectares de terreno para a construção, pelo governo, de casas para as famílias portuguesas mais carenciadas, e que estavam dispersas por várias zonas da cidade de Malaca. A grande maioria dos primeiros habitantes eram pescadores.
Um dos grandes desafios que a comunidade portuguesa de Malaca enfrenta, atualmente, prende-se com a falta de definição legal do direito à posse da terra pelos luso-descendentes que ali residem. Em 1949, uma misteriosa alteração do estatuto jurídico determinou que este terreno era pertença da Coroa Britânica, e já não classificado de propriedade livre como até então. Com base nesta alteração, houve uma concessão de arrendamento aos moradores do bairro por um período de 99 anos. Este dilema faz com que muitos membros da comunidade temam o pior à medida que se aproxima o limite temporal das concessões. Para Philomena Singho () que mora nesta casa desde a sua infância, esta é uma das maiores ameaças à integridade da comunidade.
Outra séria ameaça à comunidade portuguesa de Malaca é a política de desenvolvimento turístico do estado de Malaca. Um dos projetos pensados para a linha costeira da cidade - o Melaka Gateway - prevê a construção de uma ilha artificial a escassos 250 metros do limite do bairro. Essa eventualidade, cada vez mais efetiva, põe em causa a prática ancestral dos pescadores portugueses de Malaca, uma vez que é precisamente na zona onde pescam que se erguerá a nova cidade de arranha-céus. Como me disse Michael Singho, presidente da Malacca Portuguese Eurasian Association: “Se perdermos o mar, perdemos tudo. O mar sustem os nossos espíritos!”(https://www.facebook.com/mikesingho/)
Para muitos dos portugueses de Malaca, esta política de desenvolvimento turístico assente em construção de mega empreendimentos em terras ganhas ao mar, representa a maior ameaça, quer à continuidade do bairro como espaço-território da comunidade, quer como também à própria identidade que os une. Num primeiro impacto, e para já, mesmo sem estarem concluídas as reclamações de terras ao mar, já se faz sentir os efeitos de tais transformações: os pescadores têm que se deslocar cada vez mais para longe da costa, devido ao acumular de sedimentos e poluição existente na zona onde, normalmente, pescavam. E a perspetiva é piorar. “Se calhar, da próxima vez que vieres a Malaca, já não haverá o bairro português” - diz-me Augustin de Mello, pescador desde os 11 anos. (https://www.facebook.com/luisadoreen.demello/)
“A língua está a morrer. Os mais jovens preferem o inglês. Para eles, o português está fora de moda; é para os mais velhos.” - diz-me Philomena Singho. Outra dificuldade na manutenção da língua é o facto de na escola só ser ensinado o bahasa malaio e o inglês. “Se um aluno não passar em qualquer destas disciplinas, tem que repetir o ano. É por isso que os pais incentivam os filhos a falar bahasa e inglês, ao invés do português.” - diz-me Sara Santa-Maria. No entanto, para esta portuguesa de Malaca, os casamentos mistos são a maior ameaça que o português de Malaca enfrenta. “Se a mãe for portuguesa não há grande problema; mas se for o pai, aí já pode ser bem mais grave.” - diz. Estas duas senhoras são co-autoras de um livro sobre a língua portuguesa de Malaca, editado pela Professora de linguística Stefanie Pilllai, da University Malaya - Portugues Malaka ( Malacca Portuguese) A heritage Language in Multilingual Malaacca.
“Se nós perdermos a nossa língua e as nossas manifestações culturais, perdemos a nossa identidade!” - diz-me Martin Theseira, activista e presidente da SOS Melaka (Save Our Seashores). Uma dessas manifestações culturais é suportada por grupos folclóricos, como o Tropa de Santa Maria, que apresenta no seu repertório cantigas como o Malhão Malhão e Tia Anita de Loulé, e trajam com a influência dos trajes folclóricos minhotos.( https://www.youtube.com/watch?v=pbLqH-HIE90 )
Ao longo dos cinco séculos que intermedeiam os dias de hoje e a tomada de Malaca por Afonso de Albuquerque, a comunidade portuguesa de Malaca conseguiu manter o seu próprio sentido de identidade, nomeadamente, no que respeita à língua crioula e à religiosidade que professam.
Que futuro esperam estes, autodesignados, portugueses de Malaca?
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