Sofia Xavier 

A bolseira Sofia Xavier, a estudar Mandarim em Shanghai  na Fudan University, com uma bolsa anual de Língua e Cultura Chinesas, conta-nos as suas peripécias, desde que saiu da China no Ano Novo Chinês, para umas férias desncontraídas, e o que depressa se transformou numa corrida contra o COVID-19, tentando refugiar-se onde podia e onde o virus não tinha chegado.  Fomos acompanhando a sua situação e julgamos importante agora, voltada à China, contar um pouco da sua aventura e da realidade vivida em Shanghai neste momento, contando-nos um pouco de algumas medidas que o governo chinês e as suas empresas levaram a efeito de uma forma obrigatória de forma a controlar a pandemia. 


Por ocasião das férias de Ano Novo Chinês, desloquei-me ao Nepal, a convite de uma amiga nepalesa, com o intuito de participar no seu casamento. 

Sofia no primeiro dia do casamento, vestindo o tradicional Sari, em Kathmandu


As férias teriam uma duração prevista de um mês, mais coisa menos coisa, pelo que pretendia dividir o tempo entre a Índia, ponto de partida desta aventura, e o Nepal, destino final da viagem.

Parti de Xangai no dia 11 de Janeiro com destino a Cochim, no sul da Índia, cidade que fez parte do Estado Português da Índia entre 1503 e 1663, e se posicionou como capital do mesmo até 1510. Ora, quase como que imitando a rota dos portugueses no século XVI, segui caminho rumo a Goa. Escusado será dizer que Goa conquistou o meu coração. 
Estabelecimento comercial em Goa que preserva o nome português

Apesar de o território ter deixado de ser português, em 1961, as marcas de portugalidade parecem resistir estoicamente ao passar do tempo, permanecendo vivas nos nomes das pessoas, nos nomes das ruas e jardins, na arquitetura híbrida, ou na religião e, embora que de forma mais esbatida, na língua e gastronomia. Durante a minha estada, tive o privilégio de contactar com goeses que carregam consigo ainda esta herança linguística. Sentada numa varanda com vista para as Fontainhas, comi um delicioso bitoque, ao som de fado, de seguida sentei-me num café e tomei uma bica. O proprietário era goês e falava um português perfeito. Senti-me em casa. Na qualidade de portuguesa, não deixa de ser especial visitar um lugar ainda com alma portuguesa. Depois da pacata Goa, segui para as cidades mais atribuladas, onde permaneci alguns dias, a degustar a saborosa gastronomia indiana, encantada pela fusão, de cores, cheiros, sabores e ruídos deste país vibrante.

Convidados aguardam a saída dos noivos em casamento cristão na Basílica do Bom Jesus, Velha Goa.


Foi pouco tempo depois de chegar a Cochim, que tive conhecimento do surto do coronavírus, e da forma rápida como este, aparentemente, se propagava em território chinês. Apesar de se suspeitar que o vírus tenha tido origem em finais de Novembro, só em meados de Janeiro, é que este começou a ser de conhecimento público. Na verdade, não soube da notícia através de meios de comunicação chineses, mas sim através da minha família e amigos que, preocupados, me contactavam. Nessa altura, a situação na China parecia agravar-se a cada dia, deixando o mundo em alerta, e eu continuei a acompanhar o evoluir da situação através das notícias e meios de comunicação social. Confesso que, num primeiro momento, também desvalorizei a situação, longe de imaginar as proporções que esta tomaria mais tarde. O aglomerado de turistas chineses que se juntava todos os dias nos principais pontos turísticos indianos era algo que me preocupava, pois significava que ainda não haviam sido tomadas medidas no sentido de fechar as fronteiras. Algum tempo depois, e com a situação a agravar-se, dia após dia, essas medidas acabariam por ser decretadas. A Índia contava, à altura, com meros dois casos confirmados, pelo que considerei seguro continuar viagem.

Palácio da Cidade, na famosa Pink City, em Jaipur, Índia.

No Taj Mahal, Agra, Índia.

Crentes hindus banham-se nas margens do rio Ganges, cujas águas acreditam ser sagradas, em busca da purificação, em Varanasi, Índia.


Finda a viagem pela Índia, rumei para o Nepal. O povo do Nepal é extraordinariamente acolhedor. Receberam-me calorosamente, estendendo-me sorrisos de orelha a orelha, sorrisos esses que permitiam que a comunicação acontecesse, apesar da barreira linguística. Experienciei de perto a cultura deste país fascinante onde fui tão bem acolhida pelas suas gentes, e acompanhei de perto os preparativos da grande boda, que durou três dias. O clima era de festa, e o desfile de trajes e adereços característicos da ocasião festiva, a panóplia de cores chamativas, e a forma pomposa como todos se aperaltavam para a ocasião, tudo exercia um grande fascínio em mim. Tive oportunidade de visitar alguns lugares de importância histórica e também algumas vilas pitorescas com vista para a cordilheira dos Himalaias.

Altar de oferendas às divindades hindus, em torno do qual decorrem grande parte dos rituais no primeiro dia do casamento, em Kathmandu.

Os noivos e a família da noiva reunidos em torno do altar de adoração às divindades, no primeiro dia de casamento, em Kathmandu.

Procissão feita em honra a divindades locais, em Bhaktapur, Nepal.


Durante o período em que estive no Nepal, existia à data apenas um caso confirmado. Aproximando-se a data em que tinha voo de regresso marcado para a China, a situação parecia estar longe de estar controlada, e da escola não havia qualquer previsão de quando as aulas iriam recomeçar. Decidi, portanto, cancelar o meu voo de regresso e vi-me obrigada a mudar os planos que tinha, inicialmente, traçado.

Viajei, de seguida, para a Indonésia, país que até ao momento não registava casos de coronavírus. Aí, explorei a beleza de Bali e das pequenas ilhas em redor. Durante esse período mantive-me atenta, aguardando uma notificação da escola, mas continuava tudo muito indefinido.
Portal de templo Hindu Lempuyang Luhur, conhecido como "Gate of Heaven", em Bali, Indonésia.

Trilho para a praia Kelingking, em Nusa Penida, Indonésia.

Templo Ulur Danu Beratan, situado no Lago Bratan, a caldeira de um vulcão extinto, em Bali, Indonésia.

Foi apenas no início de Março que recebi da parte da escola um comunicado a informar que teríamos a opção de frequentar aulas, online, se assim pretendêssemos. Esta foi a solução adotada pela escola, perante as circunstâncias adversas que vivemos. As aulas tiveram início no dia 8 de Março. Pretendia regressar a Xangai, onde se encontravam todos os meus materiais de estudo e também por sentir, naturalmente, falta de alguma estabilidade. Contudo, havia indicações rigorosas para que os alunos estrangeiros não regressassem à China, a não ser que tal fosse estritamente necessário. Soube, inclusive,  de casos em que os alunos estariam a ser penalizados por regressar sem ter a escola lhes concedido autorização para o fazerem. Nessa altura, decidi refugiar-me na Tailândia, onde passei mais alguns dias. Considerei ainda um regresso a Portugal, mas logo percebi que a situação que, naquele momento estava ainda num estágio inicial, não tardaria a tomar proporções maiores.

Em visita ao Templo Budista Wat Phra Singh, em Chiang Mai, Tailândia

Templo Wat Rong Khun, conhecido como "Templo Branco", em Chiang Rai, Tailândia.


Algum tempo depois, apresentei um pedido à escola para regressar a Xangai. Foi-me autorizado o regresso e, sabendo de antemão que a situação estaria já relativamente controlada, chegou por fim a hora de voltar ao território chinês. Quando o avião aterrou em Xangai, foi escoltado por uma equipa médica, ao que se seguiram uma série de procedimentos de diagnóstico e prevenção. Foi-me comunicado que poderia regressar a casa, mas teria de ficar em quarentena durante 14 dias. 

No aeroporto, os funcionários vestiam fatos de proteção individual brancos, usavam óculos protetores e máscara, para além de viseiras que lhes cobriam todo o rosto. Ao passar pela emigração, foi-me colado um autocolante verde no passaporte, o que significava que não constituía perigo para os outros, pois não havia vindo de um país de risco e não apresentava quaisquer sintomas. A outros passageiros, consoante o grau de risco dos países de onde provinham, eram-lhes facultados autocolantes de diferentes cores, verde (risco baixo), amarelo (risco intermédio) e vermelho (risco alto).Para as pessoas às quais eram atribuídos autocolantes amarelos e vermelhos, o processo era mais moroso e complexo, sendo estas encaminhadas para centros de quarentena, instalações designadas para o efeito, cujos preços variavam consoante o tipo de instalações que a pessoa escolhesse, e cujas despesas seriam acarretadas na totalidade pelos próprios.

Embora não tenha vivenciado em primeira pessoa o processo, tive acesso a informação de pessoas conhecidas a fazer quarentena em hotéis chineses. A comida era providenciada pelas próprias instalações, colocada no exterior da porta e só depois a pessoa podia sair para recolher a comida, reduzindo-se ao máximo o contacto físico.


Na chegada ao meu compound fui repreendida por não ter avisado com antecedência que iria chegar e foi-me indicado que fizesse um breve registo num caderno. Foi-me, posteriormente, ordenado que me dirigisse ao neighborhood committee para fazer um registo mais detalhado, na manhã do dia seguinte. O passo seguinte passou pela medição da temperatura, mais uma vez, e, após responder a algumas perguntas, pude então dirigir-me para o meu apartamento. Chegada ao apartamento, fui imediatamente contactada pela agência imobiliária, que, à semelhança dos seguranças à entrada do condomínio, não se mostrou contente com o meu regresso “inesperado”. Segundo vim a perceber depois, os colegas de casa deveriam ser avisados com antecedência e, também eles, teriam de ficar em quarentena, mas nada disso me havia sido comunicado. No dia seguinte, dirigi-me ao neighborhood committee, como me havia sido indicado, onde forneci, em detalhe, todas as informações relativas aos meus últimos 14 dias, nomeadamente locais visitados, voos realizados, entre outras. Não posso dizer que tenha sido recebida de forma particularmente calorosa, e essa perceção tem sido confidenciada por outros estrangeiros que aqui estão a residir durante este período. As notícias de que os novos casos de infeção seriam todos importados do exterior, provocou nos chineses um certo receio de que os estrangeiros pudessem ser fontes de contágio do vírus.



Vista do apartamento onde a Sofia mora em Shanghai
O grande afluxo de pessoas aos aeroportos chineses de Xangai e Pequim, fez com que as autoridades não demorassem a tomar medidas mais rigorosas, tendo sido decretado que, todos aqueles que chegassem a Pequim, e, mais tarde, também a Xangai, deveriam cumprir quarentena obrigatória em instalações designadas, realizar os testes de despiste necessários, e não poderiam regressar a suas casas. Em alguns casos os voos estariam a ser desviados para outras cidades, devendo as pessoas cumprir quarentena nessas cidades. O fecho de fronteiras teve lugar no dia 28 de Março, à meia-noite, passando a partir desse momento a ser interdita a entrada no país a cidadãos estrangeiros, medida que se mantém atualmente em vigor. Em conferência de imprensa, o Governo chinês referiu  recentemente,  não haver previsões nem intenção de que os estrangeiros regressem à escola, para já, num momento em que as escolas na China começam a reabrir faseadamente, começando pelas turmas de alunos que se encontram em anos de final de ciclo, nomeadamente para aqueles que se encontram prestes a realizar Gaokao(高考), exame que foi adiado. Este exame de acesso ao ensino superior é receado por todos, dado o grau de exigência e caráter decisivo que tem em termos de futuro profissional para os alunos chineses.

Desde que regressei à China, e embora já tenha cumprido o período de quarentena, saí à rua apenas por duas vezes e por curtos períodos de tempo, mantendo-me fiel à velha máxima “mais vale prevenir do que remediar”. Tenho de admitir que ficar em casa aqui na China é muito fácil, porque o comércio eletrónico é muito desenvolvido e eficiente. Já antes do vírus, raramente precisava de sair de casa para fazer compras, bastando fazer o pedido  através de alguma das várias aplicações disponíveis de compras e, em menos de uma hora, receber a encomenda à porta de casa. O pagamento eletrónico através de aplicações como o Wechat e o Alipay é, igualmente, muito conveniente. Desde que vim para a China, raras foram as vezes em que toquei em dinheiro físico, o que em tempos de vírus até se revela muito positivo.



Livros, máscaras e desinfetante para o período de quarentena
Uma das coisas que notei de diferente quando cheguei, foi que, ao contrário do que costumava acontecer, os estafetas estavam impedidos de entrar no condomínio, tendo o cliente de se dirigir até ao portão principal, único que se encontra aberto, para receber as compras. Também aqui, à entrada do condomínio, foram colocadas estantes onde são colocadas as encomendas, encomendas essas que antes eram colocadas em cacifos no interior do condomínio e podiam ser levantadas, através de um código. Entretanto a situação já retomou a normalidade, e os estafetas já podem entrar no condomínio, sendo-lhes sempre medida a temperatura à entrada. Um outro aspeto que prendeu a minha atenção, foi o facto de os seguranças, para além de medirem a temperatura de todos os que entram no condomínio, distribuem senhas para todos os que saem, e controlam aqueles que se encontram a cumprir quarentena. Na entrada para o condomínio, bem como para qualquer lugar público é exigido que se mostre um código automaticamente gerado no Wechat e que contém informações sobre cada pessoa em relação ao seu histórico de saúde, o meu é verde, pelo que estou autorizada a circular livremente.

No passado dia 4 de Abril, foi feita uma homenagem, em todo o país, cumprindo três minutos de silêncio, em respeito aos mártires compatriotas que morreram na luta contra a epidemia. A situação parece estar relativamente controlada por terras chinesas, vejo bastante prudência por parte da maioriadas pessoas, os lugares públicos continuam a ser desinfetados com regularidade, existem dispensadores de álcool-gel e lenços de papel em vários espaços públicos, e toda a gente continua a usar máscara. As pessoas, na sua maioria, já retomaram os trabalhos e a cidade de Wuhan já abriu fronteiras, as pessoas passeiam tranquilamente pelas ruas, dançam em grupos nos jardins, e em alguns casos, regressou já o frenesim e a densidade populacional tão característicos deste país. Embora fique satisfeita por assistir a este retomar da normalidade, não posso deixar de me sentir preocupada com este “excesso de confiança”, pois nada garante que uma segunda vaga não surja. Seja como for, estou positiva e acredito e espero que tudo corra bem.


A meu ver, este efeito dominó que o vírus apresentou, suscita uma reflexão urgente sobre a necessidade de tomar medidas concertadas. Não existe um vírus “chinês”, existe sim um mundo globalizado onde os problemas de uns são os problemas de todos. Os países vêm-se confrontados com este impacto social e económico que o surto trouxe consigo, coadunado com questões de saúde pública que se afiguram prementes. Faço votos para que tudo regresse à normalidade o quanto antes.


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