Notas de uma viagem de estudo a Leiden
26 a 30 de Novembro de 2018
Susana Neves
Bolsa de investigação (Outubro 2017-Novembro 2018)
No âmbito da minha pesquisa sobre “O contributo da arte da estampa japonesa (ukiyo-e) na introdução, disseminação e culto da flora nipónica no Ocidente”, realizei, em Novembro de 2018, uma viagem de estudo a Leiden, cidade universitária holandesa, com mais de 400 séculos de existência.
O canal de
Rapenburg onde se localiza o JapanMuseum Sieboldhuis.
No final de Novembro começa a
escurecer às 16h00.
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Quando organizei a viagem a Leiden, sabia que iria encontrar em Rapenburg — o mesmo canal onde viveu o filósofo francês René Descartes (1596-1650) e, em 1807, explodiu um barco carregado de pólvora —, a notável Casa-Museu Siebold (JapanMuseum Sieboldhuis)
que alberga uma das mais célebres colecções de botânica, zoologia e etnografia japonesas do século XIX.
que alberga uma das mais célebres colecções de botânica, zoologia e etnografia japonesas do século XIX.
Sabia também que neste canal há uma entrada directa para o jardim botânico da Universidade de Leiden (Hortus Botanicus), onde o eminente médico, cientista, botânico e horticultor Carolus Clusius (1526-1609) plantou o primeiro bolbo de tulipa no final do século XVI. Interessava-me visitar este jardim para saber quais eram espécies vegetais nipónicas aqui aclimatadas, durante a primeira metade do século XIX, quando o Japão apesar da sua secular política isolacionista face ao estrangeiro, continuava a consentir que a Companhia das Índias Orientais Holandesas mantivesse o seu entreposto comercial na ilha artificial de Dejima (1641-1854).
Viajando em Novembro, no final do Outono, encontraria por certo a maioria das árvores sem folhas, mas chegaria a tempo de contemplar o vermelho vivo das folhas de alguns áceres japoneses (como o Acer japonicum), realizando desta forma uma espécie de momijigari (traduzível por “caça ao ácer”) em território europeu.
Acer japonicum fotografado em Novembro 2018, no Hortus Botanicus, de
Leiden, uma das espécies arbóreas
representadas nas estampas japonesas.
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Fotografia antiga da fachada do edifício na
Rapenburg 19,
projectada em filme documental no JapanMuseum
Sieboldhuis.
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Pormenor de uma Hydrangea macrophylla Otaksa,
pertencente ao herbário em exposição no JapanMuseum Sieboldhuis
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O programa de estudo que defini começou no dia 27, com a visita ao Japan Museum Sieboldhuis, número 19 de Rapenburg. Apesar do dia chuvoso e da reduzida luminosidade da Casa-Museu Siebold, a qualidade e diversidade da colecção, apresentada em duas salas, como se fosse um antigo gabinete de curiosidades, ultrapassou largamente as minhas expectativas.
Tendo realizado duas viagens ao Japão, a primeira de 1823 a 1829, a segunda, de 1859 a 1860, Philipp Franz Balthasar von Siebold (1796-1866), médico e naturalista alemão que trabalhara para a Companhia das Índias Orientais Holandesas na feitoria de Dejima, (de onde os portugueses tinham sido expulsos em 1639) conseguiu reunir em ambas as ocasiões uma colecção extraordinária que permite simultaneamente estudar a flora, a fauna, a caligrafia, a pintura, a arte da estampa, a cartografia e muitos outros aspectos do quotidiano de um povo que era praticamente desconhecido no seu tempo.
Tendo realizado duas viagens ao Japão, a primeira de 1823 a 1829, a segunda, de 1859 a 1860, Philipp Franz Balthasar von Siebold (1796-1866), médico e naturalista alemão que trabalhara para a Companhia das Índias Orientais Holandesas na feitoria de Dejima, (de onde os portugueses tinham sido expulsos em 1639) conseguiu reunir em ambas as ocasiões uma colecção extraordinária que permite simultaneamente estudar a flora, a fauna, a caligrafia, a pintura, a arte da estampa, a cartografia e muitos outros aspectos do quotidiano de um povo que era praticamente desconhecido no seu tempo.
Pormenor das
flores secas de uma Hydrangea macrophylla
Otaksa.
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Algumas das plantas pertencentes ao seu herbário em exposição, poderia eventualmente encontrá-las no Hortus Botanicus, que dista apenas alguns metros do Casa-Museu Siebold. No dia seguinte, beneficiando da companhia de Carla Teune, antiga jardineira principal, a quem foi dedicada uma espécie de tulipa, fiquei a conhecer o circuito das dezasseis espécies de plantas japonesas existentes no jardim, algumas das quais fornecidas por Siebold, entre outras, as três glicínias (Wisteria floribunda Alba, W. floribunda e W. sinensis) suportadas por uma pérgula em forma de túnel, uma acidentada nogueira-do-Japão (Juglans ailantifolia), os elegantes áceres-palmato (Acer palmatum) e dois grandes ulmeiros japoneses (Zelcova serrata).
Conforme me explicou a minha sábia e gentil anfitriã, que apesar de reformada faz questão de plantar todos anos milhares de bolbos com as suas próprias mãos, Siebold, co-autor da obra Flora Japonica (1830-1870), distinguiu-se dos seus antecessores médicos naturalistas — Engelbert Kaempfer (1651-1716) e Carl Peter Thunberg (1743-1828) — que sucessivamente trabalharam na ilha de Dejima ao serviço da Companhia das Índias Orientais Holandesas, por não se ter limitado a estudar e a escrever sobre a flora do Japão mas efectivamente ter enviado milhares de plantas vivas, muitas das quais não sobreviveram, outras, pelo contrário, vingaram e foram pela primeira vez aclimatadas na Europa. Segundo a brochura do Hortus Botanicus, antes das viagens de Siebold ao Japão, “só 34 plantas do Leste Asiático eram conhecidas na Europa, ele introduziu mais de 730 espécies”.
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Exterior da
Biblioteca da Universidade de Leiden
e, na fotografia seguinte, pormenor de um das
obras incluída
na
exposição “Fish & Fiction” (20 Setembro 2018-13 Jnaeiro 2019)
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Depois do registo fotográfico de algumas das árvores apresentadas por Carla Teune, dirigi-me à Biblioteca da Universidade, na Witte Single 27, para conhecer Nadia Kreeft, bibliotecária especialista em assuntos japoneses, e fui surpreendida pelos seus muitos conhecimentos sobre o Japão e o grande interesse que mostrou pela minha pesquisa, indicando-me de imediato bibliografia referente a documentos existentes no acervo.
Na opinião de Nadia Kreeft, o sucesso da presença holandesa no Japão resultou de assentar num propósito comercial, desligado de qualquer intenção evangelizadora, à qual os japoneses eram hostis.
O Museum Volkenkunde (Museu Nacional de
Etnologia) encontra-se a poucos metros da Estação Central de Leiden.
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Por sua sugestão, no último dia da minha visita de estudo, fui ao Museum Volkenkunde (Museu Nacional de Etnologia) ver as salas dedicadas ao Japão, onde se expõem mais algumas peças da colecção de Siebold, adquiridas pelo rei William I (1772-1843). Mostra-se também uma maquete de Dejima e um achado arqueológico curioso, encontrado nas imediações da casa do principal comerciante holandês, que habitava a ilha, no início do século XIX. A partir de um conjunto de fragmentos de objectos da sua cozinha infere-se que nesse período, os holandeses usavam cerâmica japonesa, consumiam vinho e Genebra acondicionados em garrafas e importados da Europa; e fumavam com cachimbo holandês de porcelana.
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Em poucos dias, constatei que Leiden não foi somente uma importante porta de entrada da flora e da arte japonesas (o Museu Nacional de Etnologia mostra também um conjunto de livros de grandes mestres de estampas) na Europa oitocentista, como de alguma forma a cidade assimilou, e até hoje manifesta, o nipónico e ancestral “culto da flor”, e por conseguinte, o indissociável apreço pela cultura da sofisticação.
Em Leiden, é comum encontrar-se nas ruas e jardins várias espécies de árvores trazidas do Japão – como a Ginkgo (Ginkgo biloba) e a Árvore da Imperatriz ou Paulónia (Paulownia tomentosa) — mas além disso, protegem-se as flores espontâneas que nascem na calçada, alargando o espaço à sua volta para que possam crescer. As flores, entre elas, uma espécie de hortênsia – Hydrangea macrophylla Otaksa, que serviu a Siebold para homenagear a sua primeira mulher japonesa, encontram-se próximas dos prédios.
O hábito de colocar, junto às grandes janelas sem cortinas, uma flor ou um objecto bonito que se oferece à curiosidade de quem passa, fez-me pensar no toko no ma japonês, cavidade feita na parede da divisão principal da casa, perpendicular ao jardim, onde se coloca uma pintura em função do ano, um objecto de arte e um arranjo floral e que constitui uma espécie de “altar” ao silêncio e à serenidade, conforme explica Junichiro Tanizaki (1886-1965), no seu ensaio “In'ei Raisan” (“O Elogio da Sombra”), 1933.
De noite, através das grandes janelas iluminadas, dos prédios que se recortam como se fossem de papel contra o escuro do céu, distinguem-se bibliotecas e, por vezes, um ou outro gato contemplativo, que evocam o gato desenhado por Ando Hiroshige (1797-1858), a observar os arrozais de Asakusa, durante o festival de Torinomachi, numa estampa pertencente à série “Cem Vistas de Edo”, de 1758.
As montras das livrarias são predominantemente temáticas. Não ostentam como entre nós as últimas novidades editorais, mostram os grandes clássicos e várias obras sobre o Japão e o Japonismo. Num pequeno livro intitulado “Japonisme”, de Erin Niimi Longhurst, com ilustrações de Ryo Takemasa (Harper Collins Publishers 2018), no capítulo dedicado ao conceito ikigai (que significa “intento”) leio o seguinte provérbio japonês: “Se tentares, pode ser que alcances. Se não tentares, não alcançarás. Isto é verdadeiro para todas as coisas. Não alcançar é o resultado de não tentar”.
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Resumindo, através da minha viagem de estudo a Leiden, confirmei o papel determinante do médico e naturalista alemão Siebold na divulgação e aclimatação de espécies da flora japonesa na Holanda e na Europa. Em certa medida, a sua acção contribuiu para alterar a “fisionomia” dos jardins holandeses: segundo informação colhida no Hortus Botanicus, cerca de setenta por cento das plantas que actualmente se encontram nos jardins, avenidas e parques da Holanda provêm do Leste Asiático.
No dia em que fotografei o busto de Siebold no Hortus Botanicus, a chuva fizera cair uma folha vermelha de ácer sobre a flor já seca de uma Hydrangea Otaksa.
Do lado esquerdo, o
Hortus Botanicus de Leiden.
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Texto e fotos
Susana Neves
31 de Agosto 2019
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